A construtora pode reter as minhas chaves por eu estar devendo?

Imagine a cena, você se dirige até o stand de uma grande construtora, lá você fica encantado pelo empreendimento, você assina o contrato com a construtora e o banco, na ocasião você é informado que deverá pagar as parcelas mensais, os balões e a taxa de evolução de obra até a entrega.

Acontece que no decorrer do tempo, você não conseguiu pagar os balões, mas continua pagando o juros de obra.

A entrega do empreendimento está próxima, mas a construtora informa que o seu imóvel não será entregue porque você está inadimplente.

Bate o sentimento de tristeza, mas você lembra que tem um primo que é advogado com atuação específica no mercado imobiliário e solicita uma consulta.

No primeiro momento o primo não quer atender, afinal, advogar para parente é no mínimo complicado, mas o primo cede e atende.

Eis que começam as perguntas.

 

1.A construtora pode reter as chaves do imóvel comprado na planta?

 R.Primeiramente, é importante falarmos sobre a sistemática da compra, o seu imóvel foi comprado sob regime de crédito associativo, ou seja, o banco financiou a sua obra. Quanto mais a obra é levantada, maior será o valor pago pelo banco, e é justamente por isso, que a proximidade com a entrega faz a taxa de evolução, conhecida como juros de obra, ser mais alta.

Assim, considerando que na ocasião da entrega, a sua unidade está praticamente quitada pelo banco, estamos diante de um comportamento abusivo da construtora, pois ela não pode reter as suas chaves.

 

2.Mas a construtora fica no prejuízo?

R.Na verdade não, pois ela pode dispor de outros métodos para reaver o débito, como cobrança, processo de cobrança e/ou execução.

 

3.Qual é o fundamento que autoriza a entrega das chaves mesmo devendo a construtora?

 R.É a chamada teoria do adimplemento substancial.

Segundo essa teoria, se a parte devedora cumpriu quase tudo que estava previsto no contrato (ex: eram 60 prestações, e ela pagou 55), então, neste caso, a parte credora não terá direito de pedir a resolução do contrato porque, como faltou pouco, o desfazimento do pacto seria uma medida exagerada, desproporcional, injusta e violaria a boa-fé objetiva, que deve ser própria do contrato.

  1. Existe julgado sobre o tema?

Sim!

Segue a sentença do processo 0021101-03.2015.8.08.0024, da 2ª Vara Cível de Vila Velha/ES que diz:

 

“(…) verifico, nesse momento que, muito embora haja dissonância entre o valor da dívida, uma apresentada pelo autor e outra apresentada pelo réu, fato é que houve a assinatura do contrato de financiamento com a CEF, em que a própria construtora ré apôs sua firma, expressando a sua concordância e conhecimento no financiamento em tela, mesmo sabendo que o valor financiado não seria suficiente para o pagamento do saldo final. (…) Não pode, agora, a parte ré impedir que o autor adentre em seu imóvel sob a alegação de não pagamento do valor total do saldo final, isso porque, primeiramente, representaria a autotutela não abrigada pelo ordenamento jurídico, nem se enquadrando em suas exceções permissivas. Além disso, nem sequer é proprietária ou possuidora do bem, porque, uma vez assinado o contrato de financiamento, a nua-propriedade e a posse indireta do bem passa a pertencer à CEF, e não mais à construtora ré. Já a posse direta é dirigida ao autor, quem deve ser, de fato, imitido na posse de seu bem, não possuindo a parte ré direito de retenção de chaves na tentativa de cobrança. Portanto, e com as informações agora trazida pela parte autora, reconsidero aquela decisão de fls. 213, e DEFIRO os requerimentos antecipatórios. Expedir, pois, mandado de imissão de posse, para que seja o autor imitido na posse do imóvel objeto dos autos, sob pena de multa diária de R$ 500,00 (quinhentos reais) para cada dia que a ré impedir a entrada do autor no bem, até o limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais). Citar e intimar.”

 

 

Ementa

EMENTA 1) DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. COMPRA E VENDA. CONSIGNAÇÃO EM JUÍZO DAS CHAVES DO IMÓVEL PELA CONSTRUTORA. POSSIBILIDADE. ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL DA AVENÇA PELO COMPRADOR. CONSIGNAÇÃO DAS CHAVES QUE SE PRESTA A FIXAR O TERMO INICIAL PARA QUE OS ENCARGOS “PROPTER REM” SEJAM REPASSADOS AO COMPRADOR, COM EFEITOS “INTER PARTES” E SALVO EVENTUAL IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO. Em contratos de compra e venda de imóveis, a jurisprudência não tem admitido a retenção das chaves pela construtora diante do inadimplemento de pequena parcela do contrato, em especial nas hipóteses em que o financiamento já foi liberado e o Banco conta com a propriedade resolúvel decorrente da alienação fiduciária, como no presente caso. b) Acerca dos encargos “propter rem” do imóvel vendido, recorde-se que a jurisprudência entende ser possível à construtora cobrar as taxas de condomínio e o IPTU do comprador apenas após a entrega das chaves, sendo nula cláusula contratual que disponha de forma diversa. c) Ademais, ao disciplinar o pagamento em consignação, o art. 337 do Código Civil dispõe que “O depósito requerer-se-á no lugar do pagamento, cessando, tanto que se efetue, para o depositante, os juros da dívida e os riscos, salvo se for julgado improcedente.”d) Portanto, considerando que somente a partir da entrega das chaves a Construtora poderá repassar ao Comprador, no bojo da relação contratual, os ônus do pagamento das taxas condominiais e do IPTU, bem como em atenção ao disposto no art. 337 do Código Civil, será apenas a partir do depósito das chaves em juízo que a Construtora poderá repassar ao Comprador os referidos débitos “propter rem”, salvo a hipótese da ação de consignação ser julgada improcedente no mérito, diante da comprovação de recusa justificada do réu em receber o imóvel. e) Ainda, considerando os efeitos “inter partes” da presente ação de consignação, a tutela ora deferida não gera quaisquer efeitos perante o Condomínio e a Fazenda Pública, que não integram a presente lide e cuja legitimidade refoge do bojo da presente ação de consignação em pagamento, destinando-se apenas a fixar o termo inicial para que o IPTU e a taxa de condomínio sejam repassados ao comprador-consignado, no bojo da relação contratual entre as partes, salvo a hipótese de improcedência da ação de consignação em cognição exauriente, nos termos do art. 337 do Código Civil. 2) AGRAVO DE INSTRUMENTO A QUE SE DÁ PROVIMENTO, EM PARTE. (TJPR – 5ª C.Cível – 0066087-82.2021.8.16.0000 – Ponta Grossa – Rel.: DESEMBARGADOR LEONEL CUNHA – J. 02.05.2022)

 

5.O que eu posso fazer?

R.Considerando a conduta ilegal da construtora, recomendo o manejo do processo judicial cabível, pugnando pela incidência da teoria do adimplemento substancial.

 

Geofre Saraiva Neto

 

http://www.instagram.com/geofresaraiva

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